Dante
e Beatriz
Renivaldo
Costa
É
engraçado como até vendo filmes idiotas a gente pode se
comover. Estava assistindo a um filme tolo, pela TV, um desses Hollywoodianos
caça-níqueis, nem importa o nome. Mas uma cena me comoveu:
Um rapaz - personagem não muito simpático, aliás
- chega doente de viagem. Sua garota, feliz, vai a seu encontro e diz
"você parece horrível! O que houve?" E ele responde
com a patética sinceridade dos doentes, "eu não sei".
E ela o beija, profunda, apaixonadamente. Pela trama a gente sabe que
daquele beijo virá a morte pela doença. Para os dois.
Por mais
boboca que fosse o filme - e era - aquele beijo me fez pensar que significava
algo assim: "eu estou com você e vou compartilhar tudo com
você, de um lado e do outro da morte". E gastei boa parte
do meu estoque de lenços de papel.
Acho que
Cristo se esqueceu de dizer no sermão da montanha "bem-aventurados
os que têm alguém que lhes dê um beijo desses".
Bem-aventurados até depois da morte.
E quem disse
que não há amor depois da morte? A gente sempre pode ter
a esperança que os amantes, depois da morte, possam passar toda
a eternidade fazendo um amor eterno, etéreo, sinergético,
sem limites nem peias, vírus nem perseguições ou
justificações, exatamente ao contrário do que tiveram
aqui.
Conhecem
a história de Dante e Beatriz? Vou contar um pouquinho. Existe
no bairro medieval de Florença uma bela casa de dois andares,
ainda hoje, de pedra, numa esquina. Era a casa dos Alighieri, pais de
Dante, gente poderosa na cidade e metida em política. Saindo
da casa, andando-se uns trinta metros estava a casa dos Portinari, também
muito ricos, inimigos políticos dos Alighieri. E no meio uma
capela. Foi neste capela que começou o namoro entre o jovens
- jovens mesmo, 15 ou 16 - Dante e Beatriz. Namorinho de olhares, semi-sorrisos,
vigiado por severas mucamas. Maledicentes espalharam que o jovem Dante
se interessava por outras mulheres. Um dia Beatriz lhe recusa o cumprimento.
Ele fica arrasado. Depois voltam às boas, às boas em seus
olhares, só isso. O jovem Dante se envolve em política,
um perdedor nato, seu partido só fez perder. E ele parte para
o exílio, o primeiro de muitos. E no exílio, ele tem um
sonho terrível. Pássaros brancos, puros e leves, voejavam.
E ele os vê cair mortos, um por um. Acorda assustado, suado como
em todo pesadelo. E ele adivinhou. Beatriz iria morrer.
Naquele momento,
Beatriz se casava, contra sua vontade, com um homem muito mais velho,
um riquíssimo banqueiro. Mal casou, caiu doente. Ficou de cama
um mês, e morreu. E, dizem, morreu virgem. Tinha vinte e um, a
mesma idade de Dante.
Este fica
arrasado. E um dia Beatriz aparece de novo em seu sonho. Não
morta, mas linda, vestida de luz. E lhe diz que ele fosse sempre fiel
a ela.
Bem, o tempo
passou, o rapaz casou com outra, teve filhos com outra. E muitos anos
depois, ele escreveu como homenagem a sua amada o poema depois conhecido
como Divina Comédia, onde ele a pôs como uma das virgens
do céu, eternamente acompanhando Nossa Senhora.
Esqueci de
dizer uma coisa: Dante, muitos anos depois, teve quatro filhos, três
meninos e uma menina. Os meninos se chamavam Pedro, Antônio e
Jacó. Quanto à menina, creio que vocês já
saem o nome dela!
Enfim meu
Deus, tanto problema. Tanto obstáculo para o amor. É política,
é doença, é dinheiro, é falta de tempo,
é a moderna incompatibilidade de gênios, e agora a pós-moderna
"incompatibilidade de horários". Volto ao que Cristo
sem dúvida pensou mas não disse, “bem-aventurados
os que se dão esse beijo”, talvez a única coisa
que salte por cima da morte e una as duas faces da vida. E talvez do
lado de lá os amantes finalmente sejam livres, sem nada disso,
sem que doenças ou contas bancárias possam separar e eles
flutuem livres, numa brincadeira como sempre deveria ter sido, tanto
gente famosa como Dante e Beatriz como gente não famosa do mesmo
jeito, e me lembrei daquela canção boba "Eu vou para
o mundo da Lua/que é feito um motel/aonde os deuses e deusas/se
abraçam e beijam no céu"...