Opinião
Política, com seu dinheiro
Carlos Alberto Sardenberg
O Globo
A Companhia de Eletricidade do Amapá (CEA, uma estatal pertencente
ao governo estadual, distribuidora de energia no estado) está
na seguinte situação:
- deve R$338 milhões à Eletronorte, estatal federal da
qual compra a energia; essa dívida equivale a 4,3 anos de fornecimento;
- deve R$230 milhões em tributos e contribuições
sociais;
- as dívidas são superiores ao montante de bens;
- seus consumidores lhe devem R$128 milhões, sendo que 67% dessa
conta é inadimplência de prefeituras, órgãos
estaduais e federais, que não são cobrados;
- no caso dos consumidores que pagam, há crime de apropriação,
pois a CEA recebe e não repassa à Eletronorte.
Em resumo, a CEA é ineficiente, improdutiva e está quebrada
- e não é de hoje.
Como conseguiu continuar funcionando tanto tempo assim? Como é
que a Eletronorte não cortou o fornecimento ou tomou alguma providência?
A resposta tem um nome: o senador José Sarney, maranhense eleito
pelo Amapá, e que manda, faz tempo, num bom pedaço da
sistema elétrico brasileiro. Ele nomeou o ministro de Minas e
Energia e há muitos anos é, por assim dizer, o "dono"
da Eletronorte, estatal que controla também via nomeações.
E o que diz a Agência Nacional de Energia Elétrica, Aneel,
que regula o setor?
Depois de diversas auditorias e depois de ter dado, em 2005, um prazo
de 180 dias para que a CEA implementasse um plano de recuperação,
fracassado, a diretoria da Aneel, por unanimidade, decidiu propor a
"caducidade da concessão". Motivo: a concessionária
simplesmente não cumpre suas obrigações legais.
Tomado esse caminho, a CEA perde o direito de distribuir energia e a
concessão é novamente licitada, sendo que a companhia
do Amapá não poderá participar. A Aneel deve formalizar
em breve sua proposta ao Ministério de Minas, poder concedente,
e que, pois, pode cassar a concessão.
Qual a chance de isso acontecer?
Perto de zero.
Ao saber da posição da diretoria da Aneel, Sarney e o
governador do Amapá, Waldez Góes, foram ao encontro do
presidente Lula. Saíram de lá animados.
Em notícias e artigos logo enviados para o "Diário
do Amapá", Sarney disse ter a garantia de Lula de que a
CEA não será privatizada, nem perderá a concessão.
Disse que Lula "mandou" o ministro de Minas e Energia formar
uma comissão paritária, com representantes do ministério
e da CEA (portanto, a Aneel de fora), para solucionar os problemas "politicamente".
Nada de tratar o assunto como "questão apenas contábil"
ou com uma "concepção monetarista". Tudo será
resolvido com base na "função social da estatal",
que não pode se preocupar apenas com o lucro. (E nem com o prejuízo,
acrescentamos nós.)
Portanto, caro ou cara contribuinte que efetivamente paga seus tributos,
prepare seu bolso. É você que vai pagar essa conta. É
simples assim. Toda vez que ouvir falar em solução política,
pode sacar a carteira.
Essa argumentação - segundo a qual o social prevalece
sobre o econômico - é, na verdade, um expediente para passar
a conta para o contribuinte do lado. A energia pode ser, como diz Sarney,
"condição fundamental para vida civilizada",
não devendo ser considerada "apenas uma commodity".
Ok, mas sendo isso, sai de graça?
Sendo óbvio que não, a verdadeira questão é
outra: quem vai pagar a conta? No caso, Sarney e seu pessoal querem
empurrar a conta para o governo federal, a viúva, que vive do
dinheiro dos contribuintes. Mais claro ainda: o consumidor de energia
elétrica do Amapá manda a conta para o contribuinte nacional.
Isso exige outra argumentação social: o Amapá
é pobre, precisa do apoio do resto da nação. Ocorre
que outros estados também são pobres e, ademais, há
pobres nos estados ricos. A pretexto de atender todos esses clientes
do Estado, aumentam-se o gasto público e, claro, os impostos.
No final dessa história, temos uma carga tributária que
tira a competitividade das empresas formais - aquelas desgraçadas
monetaristas, que vivem para o lucro e assim conseguem pagar a conta,
a dela e a dos outros. De quebra, temos um conjunto de estatais a serviço
dos políticos - de determinados políticos.
Eis por que uma economia estável e equilibrada depende de marcos
regulatórios firmes e, em seguida, de agências independentes
capazes de implementar as regras. Desde seu início, o governo
Lula manifestou seu desagrado com esse sistema. A tese era de que o
governo eleito perdia poder político.
E política, no caso, é isso que Sarney arrancou de Lula.
CARLOS ALBERTO SARDENBERG é jornalista.
E-mail: [email protected]