Congresso em Foco
Por que governantes progressistas abrigam filhotes da ditadura
Geraldo Serathiuk*
Leio inúmeras mensagens de decepção e frustração
no e-group dos amigos que lutaram contra o arbítrio aqui no
Paraná, indignados com o fato de ver o presidente, governadores
e prefeitos progressistas nomearem em suas equipes pessoas que serviram
a ditadura. Pessoas que eram da Arena, PDS, lambe-botas e muitos que
eram até dedos-duros que conhecemos. Em razão disso,
possuído por um profundo sentimento de generosidade e de compreensão
humana, resolvi mostrar a causa principal desse fato acontecer. Na
verdade, isto é a realização de um projeto dos
estrategistas do regime de exceção. Ora, vejam por quê.
O governo federal acaba de encaminhar uma proposta de reforma política
ao Congresso Nacional propondo lista fechada, financiamento público
exclusivo, fidelidade partidária, inelegibilidade, fim das
coligações proporcionais e cláusula de barreira.
Tal proposta partiu do diagnóstico do atual sistema que rege
o processo político brasileiro, é "balizado por
um presidencialismo de coalizão incrustado em um quadro partidário
multifragmentado e volátil, que condiciona os governos à
montagem de composições partidárias amplas, com
vistas à garantia mínima de governabilidade".
E que num quadro desses, os sucessivos mandatários, desde
o fim da ditadura de 64, tiveram dificuldades para governar, pois
a montagem do governo e de sua sustentação no parlamento
nunca se deu em bases programáticas. Pelo contrário.
As coligações são apenas para atender às
demandas do pleito, há exacerbação de personalismo,
prevalência do poder econômico e fragilização
dos partidos. Com reflexos nos demais poderes e nas esferas estadual
e municipal.
Afinal, o sistema mantido pela nossa Constituição Federal
foi o estruturado na ditadura, que, vendo o seu modelo de desenvolvimento
elitista e para poucos ruir com desemprego, carestia e miséria,
trouxe o avanço das oposições nos estados mais
populosos, com a inevitável perda da presidência, de
governos e prefeituras. Resolveram montar um sistema parlamentar para
a elite econômica, a quem representavam, continuar dando as
cartas. Principalmente porque este sistema político elege inevitavelmente
gente muito, muitíssimo desqualificada. O que é bom
para o poder econômico e para as oligarquias regionais continuarem
mandando nos governos.
Diagnóstico correto colocado na mensagem da proposta de reforma
política. Porém, não se fala num dos temas mais
importantes para a reforma política, que é a distorção
do sistema representativo pela falta da adoção do coeficiente
eleitoral nacional, para a eleição dos deputados federais
e a necessidade de tirar o papel do Senado Federal de segunda Câmara
revisora, o que agride o Estado de direito democrático.
No caso da Câmara dos Deputados, casa de representação
do povo, determinou-se que poderão eleger-se um mínimo
de oito e um máximo de setenta deputados federais por Estado-membro.
Ao não se adotar a forma de coeficiente eleitoral nacional,
produziu-se uma distorção, pois aproximadamente 40%
dos eleitores elegem 263 deputados federais e 60% dos eleitores elegem
apenas 250 deputados federais.
O Senado Federal - casa de representação dos
Estados-membros - foi ampliado com a transformação
de territórios pouco populosos e com pequenas economias. Deveria
ter como atribuição discutir matérias de interesse
da União e de conflitos entre as unidades federativas, mantendo
o equilíbrio para o desenvolvimento das regiões. Mas,
por distorção do sistema representativo, os senadores
têm um dos campos de atribuições e competências
dos mais amplos do mundo, podendo votar e vetar tudo, como se fossem
uma segunda Câmara revisora.
A forma de impor três senadores por Estado-membro gera outra
distorção: aproximadamente 40% dos eleitores elegem
59 senadores e 60% dos eleitores elegem apenas 22. Com isso, um senador
eleito com 10 milhões de votos tem o mesmo peso de um senador
que se elegeu com 300 mil votos. Isso é muito grave, pois o
campo de atribuição e competência tão amplo
acaba barrando a modernização das legislações
brasileiras, pois representantes de Estados-membros poucos populosos
e com economia pequena acabam impondo projetos locais, às vezes
pessoais, em detrimento dos interesses estratégicos da sociedade
brasileira.
Diante desse dilema, a reforma política - que seria
realmente necessária - vai sendo protelada e o eleitor
brasileiro em alguns Estados-membros vale 0,5 voto, enquanto em outros
vale 15,4 votos. Não é por acaso o desinteresse pelas
eleições, pois a distorção do sistema
representativo distancia o representante do representado, comprometendo
o sistema democrático.
Distanciamento que não será resolvido só
com a reforma proposta.
Em função dessa distorção, qualquer presidente
da República, governador e prefeito eleito pelo voto direto,
por mais progressista que seja, teve, tem e terá problema de
governabilidade. Tudo isso resulta naquilo que a ditadura queria:
um presidencialismo de coalizão, ou seja, você pensa
que está votando num presidente, governador e prefeito com
um programa de governo progressista, mas nas eleições
do parlamento, em razão da deformação do sistema
político, a sociedade não percebe que elege um governo
de coalizão, às vezes conservador, desqualificado e
retrógrado. Por isso, é difícil governar e implantar
políticas públicas voltadas para o povo por culpa desta
engenharia política deixada pela ditadura e que o poder econômico
e as oligarquias regionais resistem em mudar. Pois ganharam e ganham
muito com ela.
Há de se considerar também que a distorção
do sistema representativo, estruturado no período de arbítrio,
para evitar o avanço das oposições progressistas,
acabou gerando um custo muito alto para o país manter a governabilidade,
pois para garantir a maioria no parlamento, foi usado como moeda de
troca a criação e a manutenção de inúmeras
estruturas públicas desnecessárias no âmbito federal,
estadual e municipal. Incluindo as indicações para o
Judiciário e os tribunais de contas, colocando em dúvida
o princípio da independência dos poderes.
Além do mais, acabamos por ter um sistema representativo deformado
que ajudou muito na construção de uma dívida
interna e externa e de um sistema previdenciário que beneficiou
poucos. E, por conseqüência, a manutenção
de um sistema tributário questionável e uma política
de juros que onera o setor produtivo nacional e a sociedade, que são
forçados a pagar a conta desta distorção.
Por isso, temos que continuar mobilizando a sociedade brasileira
para debater a reforma política em profundidade sob a ótica
de um novo pacto federativo, para que se redefinam as atribuições
dos senadores, o critério de composição do Senado
Federal e se façam mudanças na eleição
da Câmara dos Deputados. Não só sob o enfoque
da reforma do sistema partidário e eleitoral. Deve-se exigir
a implantação do coeficiente eleitoral nacional, de
acordo com o fundamento do princípio "um cidadão,
um voto". Esse princípio desaguará na reforma do
Estado com o objetivo de se construir, verdadeiramente, um Estado
de direito democrático e, por decorrência, um novo modelo
de desenvolvimento democrático para todos os brasileiros.
* Geraldo Serathiuk, advogado especializado em direito tributário
pelo IBEJ/PR e estudante de MBA de Marketing e Estratégia da
UFPR.