ENTREVISTA
COM O MARCOLA DO PCC
Pra quem acredita que os "chefes do tráfico" são
todos ignorantes, leiam isso...
23/05/2006
Estamos todos no inferno
Não há solução, pois não conhecemos
nem o problema
'Você é do PCC?"
- Mais que isso, eu sou um sinal de novos tempos. Eu era pobre e invisível...
vocês nunca me olharam durante décadas... E antigamente
era mole resolver o problema da miséria... O diagnóstico
era óbvio: migração rural, desnível de renda,
poucas favelas, ralas periferias... A solução é
que nunca vinha... Que fizeram? Nada. O governo federal alguma vez alocou
uma verba para nós? Nós só aparecíamos nos
desabamentos no morro ou nas músicas românticas sobre a
"beleza dos morros ao amanhecer", essas coisas...
Agora, estamos ricos com a multinacional do pó. E vocês
estão morrendo de medo... Nós somos o início tardio
de vossa consciência social... Viu? Sou culto... Leio Dante na
prisão...
- Mas... a solução seria...
- Solução? Não há mais solução,
cara... A própria idéia de "solução"
já é um erro. Já olhou o tamanho das 560 favelas
do Rio? Já andou de helicóptero por cima da periferia
de São Paulo? Solução como? Só viria com
muitos bilhões de dólares gastos organizadamente, com
um governante de alto nível, uma imensa vontade política,
crescimento econômico, revolução na educação,
urbanização geral; e tudo teria de ser sob a batuta quase
que de uma "tirania esclarecida", que pulasse por cima da
paralisia burocrática secular, que passasse por cima do Legislativo
cúmplice (Ou você acha que os 287 sanguessugas vão
agir? Se bobear, vão roubar até o PCC...) e do Judiciário,
que impede punições. Teria de haver uma reforma radical
do processo penal do país, teria de haver comunicação
e inteligência entre polícias municipais, estaduais e federais
(nós fazemos até conference calls entre presídios...)
E tudo isso custaria bilhões de dólares e implicaria numa
mudança psicossocial profunda na estrutura política do
país. Ou seja: é impossível. Não há
solução.
- Você não têm medo de morrer?
- Vocês é que têm medo de morrer, eu não.
Aliás, aqui na cadeia vocês não podem entrar e me
matar... mas eu posso mandar matar vocês lá fora.... Nós
somos homens-bomba. Na favela tem cem mil homens-bomba... Estamos no
centro do Insolúvel, mesmo... Vocês no bem e eu no mal
e, no meio, a fronteira da morte, a única fronteira.
Já somos uma outra espécie, já somos outros bichos,
diferentes de vocês. A morte para vocês é um drama
cristão numa cama, no ataque do coração... A morte
para nós é o presunto diário, desovado numa vala...
Vocês intelectuais não falavam em luta de classes, em "seja
marginal, seja herói"? Pois é: chegamos, somos nós!
Ha, ha... Vocês nunca esperavam esses guerreiros do pó,
né?
Eu sou inteligente. Eu leio, li 3.000 livros e leio Dante... mas meus
soldados todos são estranhas anomalias do desenvolvimento torto
desse país. Não há mais proletários, ou
infelizes ou explorados. Há uma terceira coisa crescendo aí
fora, cultivado na lama, se educando no absoluto analfabetismo, se diplomando
nas cadeias, como um monstro Alien escondido nas brechas da cidade.
Já surgiu uma nova linguagem. Vocês não ouvem as
gravações feitas "com autorização da
Justiça"? Pois é. É outra língua. Estamos
diante de uma espécie de pós-miséria. Isso. A pós-miséria
gera uma nova cultura assassina, ajudada pela tecnologia, satélites,
celulares, internet, armas modernas. É a merda com chips, com
megabytes. Meus comandados são uma mutação da espécie
social, são fungos de um grande erro sujo.
- O que mudou nas periferias?
- Grana. A gente hoje tem. Você acha que quem tem US$40 milhões
como o Beira-Mar não manda? Com 40 milhões a prisão
é um hotel, um escritório...
Qual a polícia que vai queimar essa mina de ouro, tá ligado?
Nós somos uma empresa moderna, rica. Se funcionário vacila,
é despedido e jogado no "microondas"... ha, ha... Vocês
são o Estado quebrado, dominado por incompetentes. Nós
temos métodos ágeis de gestão. Vocês são
lentos
burocráticos. Nós lutamos em terreno próprio. Vocês,
em terra estranha. Nós não tememos a morte. Vocês
morrem de medo. Nós somos bem armados. Vocês vão
de três-oitão. Nós estamos no ataque. Vocês,
na defesa. Vocês têm mania de humanismo. Nós somos
cruéis, sem piedade. Vocês nos transformam em superstars
do crime. Nós fazemos vocês de palhaços. Nós
somos ajudados pela população das favelas, por medo ou
por amor. Vocês são odiados. Vocês são regionais,
provincianos. Nossas armas e produto vêm de fora, somos globais.
Nós não esquecemos de vocês, são nossos fregueses.
Vocês nos esquecem assim que passa o surto de violência.
- Mas o que devemos fazer?
- Vou dar um toque, mesmo contra mim. Peguem os barões do pó!
Tem deputado, senador, tem generais, tem até ex-presidentes do
Paraguai nas paradas de cocaína e armas. Mas quem vai fazer isso?
O Exército? Com que grana? Não tem dinheiro nem para o
rancho dos recrutas... O país está quebrado, sustentando
um Estado morto a juros de 20% ao ano, e o Lula ainda aumenta os gastos
públicos, empregando 40 mil picaretas. O Exército vai
lutar contra o PCC e o CV? Estou lendo o Klausewitz, "Sobre a guerra".
Não há perspectiva de êxito... Nós somos
formigas devoradoras, escondidas nas brechas... A gente já tem
até foguete antitanques... Se bobear, vão rolar uns Stingers
aí...Pra acabar com a gente, só jogando bomba atômica
nas favelas... Aliás, a gente acaba arranjando também
"umazinha", daquelas bombas sujas mesmo.... Já pensou?
Ipanema radioativa?
--- Mas... não haveria solução?
- Vocês só podem chegar a algum sucesso se desistirem
de defender a "normalidade". Não há mais normalidade
alguma. Vocês precisam fazer uma autocrítica da própria
incompetência. Mas vou ser franco... na boa... na moral... Estamos
todos no centro do Insolúvel. Só que nós vivemos
dele vocês... não têm saída. Só a merda.
E nós já trabalhamos dentro dela. Olha aqui, mano, não
há solução. Sabem por quê? Porque vocês
não entendem nem a extensão do problema. Como escreveu
o divino Dante: "Lasciate ogna speranza voi che entrate!"
Percam todas as esperanças. Estamos todos no inferno.
Jornal: O GLOBO
Autor:
Editoria: Segundo Caderno
Tamanho: 1010 palavras
Edição: 1
Página: 8
Coluna: Arnaldo Jabor
Seção:
Caderno: Segundo Caderno